“As nossas decisões individuais não têm qualquer efeito
face à mudança de que precisamos.”
Naomi Klein
Não podia adiar ainda mais este texto. Não é exatamente um tema, ou um cruzamento de temas, que seja uma novidade, mas pareceu-me essencial introduzi-lo nesta coleção de textos, que se têm ocupado do grande tema do consumo consciente (e sustentável), e da sua relação com a produção artesanal e semi-industrial de pequena escala.
Trata-se largamente da relação entre as políticas económicas vigentes, o que hoje se denomina geralmente por neoliberalismo, e os fenómenos históricos do colonialismo, que são, segundos muitos autores, apenas uma continuação histórica um do outro. Aquilo que o projeto colonialista europeu pôs em marcha, desde há cerca de 500 anos, tem sido corroborado pelas lógicas de mercado que regulam largamente os países do hemisfério norte desde os meados dos anos 70.
Para este artigo baseei-me numa entrevista (pré-pandemia) à autora do best-seller No Logo, a jornalista e ativista Naomi Klein. Uma obra que recomendo, desde já, e que apesar de ter sido escrito há 23 anos, parece falar-nos dos mesmos fenómenos abusivos e violentos que vemos na sociedade e na cultura popular dos nossos dias. Nesta entrevista de 2019, Naomi Klein fala sobre uma ideia essencial que tem dificilmente penetrado o discurso das marcas e das suas mega-corporações, e consequentemente, dos media que reproduziram este mesmo discurso e que sustêm que é possível influenciar seriamente o impacto ecológico da vida humana actual no planeta com o poder da acção individual dos cidadãos: apenas com as nossas escolhas de consumo. E aquilo que felizmente tem sido rapidamente demonstrado nos últimos anos é que essa falácia era apenas mais uma estratégia de marketing, destinada a criar mais riqueza, e não mais igualdade ou mais sustentabilidade ambiental a longo prazo.
“Em termos do carbono, as decisões individuais que tomamos não têm qualquer efeito face à escala da mudança de que precisamos. E acredito mesmo que o facto de para tantas pessoas ser muito mais confortável falar sobre os nossos consumos pessoais do que sobre mudanças sistémicas é um produto do neoliberalismo, que nos treinou para olharmos para nós próprios como consumidores acima de tudo. Para mim, essa é a vantagem de recuperarmos essas analogias históricas, como o New Deal ou o Plano Marshall – lembram-nos de épocas em que éramos capazes de pensar em mudanças nessa escala. Porque a verdade é que temos sido treinados para pensar em pequena escala. É incrivelmente significativo que Greta Thunberg tenha transformado a sua vida num grito pela emergência.”
Naomi Klein1
A ilusão do consumo como fator de mudança
O conformo de acreditarmos que o nosso papel como consumidores é suficiente para fazermos frente às mudanças urgentes que têm de acontecer para garantirmos a nossa sobrevivência no planeta tem-nos afastado da concretização da escala da urgência climática, e portanto, da necessidade de um novo paradigma civilizacional. E não é de admirar que sejam as gerações mais jovens a politizar estas questões, que as empresas e as marcas nos convenceram que existiam apenas no plano da economia e, portanto, do consumo. Falei já num texto anterior sobre como o nosso papel político de cidadãos (habitantes da polis), tem sido progressivamente substituído pelo nosso papel como consumidores — roubando-nos dos nossos direitos de participação e ocupação cívica do espaço público, e trocando-o pelo nosso papel como consumidores, estruturalmente limitado ao nosso poder financeiro individual, eliminando também de uma assentada o poder da organização popular.
Não é um acaso que persista já há algum tempo uma campanha crescente de descredibilização dos discursos sociais típicos da esquerda política, com base na defesa do bem comum, dos serviços públicos universais e do papel político dos indivíduos e das organizações que defendem os direitos do trabalho, mas também os direitos das comunidades tradicionalmente marginalizadas — tais como os sindicatos e as associações cidadãs, respetivamente. Esta descredibilização e até estigmatização do discurso político da esquerda é uma estratégia consertada de vários sectores políticos e económicos para poderem implementar as suas políticas de privatização e mercantilização do bem comum, desde os serviços (de saúde, de ensino, de gestão pública), até ao próprio território, determinando a valorização de determinados territórios e geografias em detrimento de outras.
O que até há alguns anos atrás seriam vistas apenas como medidas políticas sociais-democratas, de apoio aos menos favorecidos, de fortalecimento da função pública e dos serviços do estado — de nivelamento das desigualdades sociais estruturais — são hoje em dia conotadas como uma “opção” política de esquerda, porque põe em causa os projetos políticos dos que querem “menos estado”, e portanto, menos regras impostas à iniciativa privada, focada em asfixiar e ao mesmo tempo pressionar os orçamentos estatais, não deixando alternativas às instituições públicas se não recorrerem a “serviços externos”, ou seja, a serviços privados focados apenas no lucro e não no serviço público. Este fenómeno é estrutural e transversal: acontece na saúde, na educação, na justiça, na segurança pública, nas comunicações, na cultura, nos transportes, e de alguma forma, em todas as áreas que em tempos eram servidas por algum tipo de serviço público. E toda esta mercantilização do que em tempos era bem comum está profundamente implicada na crise ambiental que vivemos.
Colonialismo e supremacia branca: uma das faces da crise climática
E como é que estas questões de ideologia política têm influência nos discursos da emergência climática e na nossa acção para com o planeta? Segundo Naomi Klein, por exemplo, não é possível não traçarmos linhas entre o que se passa nos países responsáveis pela colonização de grande parte do hemisfério sul e o que se passa nas fronteiras desses mesmos países: dos Estado Unidos à Europa. As políticas anti-imigração e de supremacia branca surgem em força precisamente nestas zonas, como nos estados do sul dos Estado Unidos, junto à fronteira com o México, ou na Itália, Espanha e na Grécia, a braços com a crise migratória do Mediterrâneo.
“Temos todas as hipóteses de falharmos o alvo, mas cada fracção de grau de aquecimento global que sejamos capazes de adiar é uma vitória, e cada política que consigamos implementar para tornarmos as nossas sociedades mais humanas é um passo para resistirmos aos inevitáveis choques e tempestades que virão sem cairmos na barbárie. Porque o que realmente me aterroriza é aquilo que vemos nas nossas fronteiras na Europa, na América do Norte e na Austrália – não acho que seja uma coincidência que os estados que defendem a colonização de povoamento e os países que são o motor desse colonialismo estejam na linha da frente dessas situações. Estamos a assistir ao início de uma era de barbárie climática. Vimo-lo em Christchurch, vimo-lo em El Paso, o casamento entre a violência da supremacia branca com o cruel racismo anti-imigração.”
Naomi Klein
Há um projeto neocolonialista em marcha em muitos países europeus, na América do Norte e também em alguns países da América do Sul, e na Austrália e Nova Zelândia, cujas bases assentam em ideias xenófobas, racistas e homofóbicas que acreditávamos mortas, para tornar os imigrantes (e os filhos e netos dos que já foram imigrantes) e as comunidades historicamente estigmatizadas (como a comunidade cigana, por exemplo) em bodes expiatórios dos problemas das economias extra-capitalistas e extrativistas destes países. E sabemos também que muitos destes imigrantes são, direta ou na maioria dos casos, indiretamente, vítimas da crise climática. Uma crise cuja raíz jaz precisamente na força extrativista e de enorme violência ambiental perpetrada nos países do chamado sul global, nos últimos 200 anos, pelos países do norte global.
“A era do racismo científico começou com o comércio transatlântico de escravos, era a lógica que justificava aquela brutalidade. Se a nossa resposta às alterações climáticas é o reforço das nossas fronteiras, é claro que as teorias que o justificam, e que criam essas hierarquias dentro da humanidade, voltam em força. Há anos que há sinais disso, mas agora está a ficar mais difícil negá-lo porque temos assassinos a gritá-lo em cima de telhados.”
Naomi Klein
A justiça social finalmente no movimento ambientalista
E portanto, como seguir em frente perante esta barbárie? A ação coletiva, uma resposta não apenas possível como poderosa — como temos vistos na última década com todas as ONGs dedicadas à crise climática — não pode continuar a ser uma recordação de outros tempos. Mas como combater esta entropia do tempo que nos faz virar apenas uns para os outros com um ecrã de permeio, e nos continua a deixar longe de aceder a estruturas horizontais de organização cidadã? Seja porque não há tempo, seja porque trabalhamos tempo demais, seja porque não é fácil aceder aos centros urbanos para se juntarem várias pessoas de forma espontânea, em organizações sem fundos exteriores. Seja também porque a organização cidadã é desencorajada em tantas instâncias da nossa formação pessoal, e em geral, pela sociedade. Seja porque todas as demonstrações de cidadania e de ocupação do espaço público (sem objetivos comerciais) esbarra quase sempre no espaço privado ou privatizado. Como refere a autora na mesma entrevista: “Acreditamos que estamos tão diminuídos enquanto espécie que somos incapazes disso. E a única coisa que pode mudar essa crença é encontrarmo-nos cara a cara em comunidade, partilhando experiências, longe dos écrans e juntos nas ruas e na natureza, e irmos conseguindo algumas vitórias e sentirmos esse poder.”
E sempre que há injustiças gritantes, as pessoas organizam-se e saem à rua, as pessoas criam associações, ONGs e movimentos sociais que podem começar com uma simples greve à escola à sexta-feira. E mudam, não o mundo, mas um movimento perpétuo dedicado a não deixar que as injustiças sociais sejam ignoradas. Não é um acaso que o movimento pela justiça climática tenha ganho este termo, justiça, o que é uma ideia política tão forte e tão acertada. Porque estamos crescentemente mais conscientes hoje que tudo o que temos feito a este planeta se resume a um acumular de injustiças sociais: raciais, étnicas, religiosas, de género, de identidade de género, de classe social. E são todas estas as injustiças que podemos vingar ao exigir um novo formato social, um modelo novo de sociedade em que a acumulação de capital e de riqueza não é aquilo que nos define, mas antes tudo o resto que podemos partilhar com os outros.
”Ao longo dos anos fui tendo muitas conversas com ambientalistas, e percebi que eles parecem realmente acreditar que ligar o combate às alterações climáticas ao combate à pobreza ou à luta pela justiça racial faz com que seja mais difícil ter sucesso. Temos de largar a ideia de que “a minha crise é maior do que a tua: primeiro salvamos o planeta e depois combatemos a pobreza, o racismo e a violência contra as mulheres”. Não funciona assim. E afasta as pessoas que estariam mais dispostas a lutar por mudanças.”
Naomi Klein
E termino este texto com uma imagem, que podem ver aqui, e uma sugestão de leitura da mesma autora, que poderão adquirir, por exemplo, aqui:
“In ‘Hot Money’ Naomi Klein lays out the evidence that deregulated capitalism is waging war on the climate and shows that, in order to stop the damage, we must change everything we think about how our world is run.”2
Desejo-vos óptimas leituras!
Filipa
Entrevista no jornal Público. Natalie Hanman (The Guardian): “Naomi Klein: “As nossas decisões individuais não têm qualquer efeito face à mudança de que precisamos”. 19 setembro 2019
Hot Money, Naomi Klein (2021), Penguin Books.
Mais um texto incrível, obrigada Filipa.
É por partilhas como estas que ainda me lembro do bom que tem a internet. Estamos todos muito muito mais online, ligados, mas ao contrário do "tempo" em todos tínhamos blogues, não estamos propriamente a usar este espaço para partilhar ideias, pelo contrário, anda toda a gente apenas com vontade de dar opinião avulsa, sem usar a mesma internet para saber mais.
Sinto que é muito importante mais do que nunca que as pessoas se voltem novamente umas para as outras, porque o tempo urge e a nossa existência não é tecnológica.
Mais uma vez obrigada pelo texto e pelas referências.
Filipa, obrigada, bom texto para abrir os olhinhos!