Junho
“Aceitar que o nosso poder político existe apenas ao nível das nossas escolhas como consumidores é aceitar que apenas podemos fazer uma diferença com o dinheiro que temos no bolso.”
Voltei a esta frase que escrevi há algum tempo porque tenho-me ocupado a refletir sobre as estratégias a que empresas e instituições recorrem para aniquilar o nosso papel político de cidadãs/cidadãos. De como se tem ignorado a importância de nos envolvermos como cidadãos, e não apenas como consumidores, com o mundo.
É muito claro hoje que há uma força esmagadora concentrada em eliminar o papel político dos cidadãos, transformando-os em consumidores. Transformando utentes, alunos ou contribuintes em “clientes”. Privatizando espaço urbano público com a “mais-valia” da criação de empregos no comércio e na hotelaria. Estes exemplos são baseados em coisas que acontecem diariamente no nosso país. Há universidades públicas que se referem internamente aos alunos como "clientes"; há ocupações de terrenos públicos por empresas para a construção de espaços comerciais, contra todas as regras do planeamento urbano e das metas ecológicas das cidades, nomeadamente da qualidade do ar e da impermeabilização do solo — este exemplo está neste momento a desenrolar-se no Porto, junto ao edifício da Casa da Música, nos terrenos da antiga estação ferroviária, onde se prepara a construção de um novo super-centro comercial. O espaço do político desaparece progressivamente na cidade para dar espaço ao económico, ao financeiro, ao movimento do consumo e da produção de bens. E as "alternativas de consumo" podem ser apenas cortinas de fumo.
Na verdade, interessa muito pouco se os "novos" consumidores são mais "conscientes" ou se pensam de forma alternativa, se a moeda de troca for o seu papel político na sociedade. E claramente, o consumo continua a ser um ato político, mas não nos mesmos moldes que era há alguns anos atrás. A captura da politização da vida pública pelo mercado tem-nos feito crer na permanência do ato político das nossas escolhas como consumidores, quando elas se tornam cada vez mais vazias, seja pela falta de ausência de verdadeiras alternativas, seja pela sofisticação das estratégias de marketing. Esta politização das empresas é, em tantos casos, uma estratégia comercial esvaziada de intenções políticas. Mas a questão que se coloca é também se é realmente possível ter posicionamentos políticos honestos através da venda de produtos ou serviços, ou se o propósito comercial suplanta sempre qualquer intenção de participação política na sociedade. Hoje em dia, são conhecidos os fenómenos de apropriação de causas políticas pelas marcas que consumimos, como estratégias comerciais e de marketing, seja o greenwashing (utilizando as causas ambientalistas), o pinkwashing (utilizando as lutas pelos direitos LGBTQI+), o purplewashing (utilizando as lutas feministas), ou o BLM-washing (utilizando as lutas pelos direitos das pessoas negras).
O fenómeno da apropriação do mercado dos movimentos de contra-cultura e de resistência política é antigo, mas hoje ele acontece de uma forma viralizante e quase instantânea, dando pouco tempo para que a sociedade possa refletir sobre cada fenómeno sem o filtro do consumo. Em suma, há uma mercantilização da ação política individual, e da ideia de ativismo. Veja-se o exemplo da partilha viral, nas redes sociais, de imagens com pilhas de livros que cada um lê sobre temas relacionados com movimentos que têm tido grande repercussão mediática seja o caso do feminismo, dos direitos LGBT ou da igualdade étnico-racial — fenómeno que se intensificou no ano passado, durante a quarentena. Não parece haver um espaço político pessoal em que o mercado não possa intervir e criar uma necessidade: seja pelos livros e filmes que vemos (e compramos), seja pelos produtos de propaganda a cada uma destas causas: o consumo parece ser ubíquo ao ativismo contemporâneo.
Divirto-me a tentar imaginar este cenário nos tempos do maio de 68, em que os jovens contestatários consumiam essencialmente tabaco e livros marxistas que hoje seriam certamente patricinados com slogans “ativistas”. Mas este cenário deixa-nos perceber o perigo que a situação comporta: o espaço para o político a esbater-se progressivamente para que apenas possamos aceder a ele pelo consumo. Em suma: nada existe fora do mercado. E portanto, apenas podemos agir como consumidores, embora imbuídos de uma intenção política. Além do perigo que esta apropriação implica para a democracia, se passamos a ser considerados socialmente somente como consumidores, estamos ativamente a excluir todos os que não se qualificam como tal, seja o caso dos sem-abrigo, dos refugiados, dos imigrantes, dos desempregados e das pessoas excluºidas e marginalizadas. Em suma, as pessoas que permanece na margem da sociedade são os não-consumidores. E isso deveríamos deixar-nos alerta para uma clara violação de direitos humanos: o direito a existirmos politicamente, independentemente da nossa situação económica pessoal.
A tal polarização política que tanto se fala hoje em dia tem sido manobrada por grupos políticos interessados em criar divisões na sociedade, supostamente com base precisamente na presunção do que cada um contribui financeiramente para a sociedade (e os sistemas de segurança social), mas que não passa de uma estigmatização das populações empobrecidas, guetizadas e excluídas socialmente, que tantas vezes têm de recorrer a sistemas económicos paralelos para sobreviverem. O paradoxo jaz na diferença com que a opinião pública julga os “crimes” destas comunidades marginalizadas contra os crimes de burla económica e corrupção a alto nível que fazem as manchetes dos jornais vezes sem conta. Continuamos, socialmente, a preferir um homem poderoso ou uma empresa potencialmente corrupta a uma comunidade de pessoas pobres e sem recursos, não porque moralmente sejam melhores mas porque nos permitem a ideia de vantagem social que nos é vendida como um objetivo de vida. E ignoramos neste caminho todos os atropelos que jamais perdoaríamos aos que não têm poder.
Numa altura em que se fala muito no conceito de empatia, defender os que não têm direitos assegurados, os que poderão ser sempre excluídos porque não encaixam num sistema estruturalmente viciado, deveria ser uma prioridade coletiva. Não apenas num sentido de empatia pessoal, em relação a cada indivíduo — em que facilmente podemos esquecer as opressões sistémicas de grupos sociais, criando excepções em vez de regras — mas uma empatia comunitária, local, regional, uma empatia em que reconhecemos que a pertença a uma identidade social não deve definir onde estamos ou onde podemos estar. Para isso, é essencial compreendermos como o capitalismo vigente está, por um lado, a isolar-nos uns dos outros, mediando digitalmente as relações, e fazendo-nos acreditar que podemos fazer a diferença apenas com a nossa acção individual; e por outro, depois de devidamente isolados, em comunicação digital permanente com os outros (mediada pelos algorítmos), a convencer-nos de que apenas comprando de determinadas formas e subscrevendo certos conceitos de consumo contemporâneo — zero waste, minimalismo, upcycling, DYI, fair-trade, etc. — é que podemos chegar a uma acção política individual. Se as nossas escolhas como consumidores são claramente políticas, elas não podem ser a única vertente política da nossa vida, tanto como indivíduos, como quando organizados em coletivos (sejam eles de que natureza forem). O espaço para o político não mediado pelo consumo tem de ser garantido, à revelia de um mercado voraz, que requer todo o nosso tempo. E esse mesmo espaço pode ser alcançado, por exemplo, pela arte e num sentido mais amplo, pela cultura — o espaço da polis onde o político, o económico, o espiritual e o científico se devem finalmente cruzar, e permitir-nos, então, aceder a uma plena cidadania.
Algumas ideias e leituras sobre estes assuntos:
“…our personal consumption is far from the only factor at play — there's also the matter of what we can accomplish with our own grassroots tactics. The last chapter of the book focuses on political action people can take, refreshingly moving beyond the "carbon footprint" model of placing all responsibility on individuals. Corporations, she notes, want us to "see ourselves as consumers over and above our role as citizens.""
Maxine Bèdat em entrevista à revista ELLE a propósito do seu livro "Unraveled"
“(…) a metrópole neoliberal corresponde, assim, à afirmação de um paradigma de poder biopolítico, que substitui a política pela economia enquanto modo de governação, fazendo do território um vasto campo logístico e financeiro, constituindo uma forma de vida reduzida à sua dimensão económica (como capital humano condenado à rentabilidade infinita do corpo e da inteligência) e à sua dimensão estritamente biológica (a reprodução infinita das suas condições de vida). A trilogia que, durante tanto tempo, serviu para descrever um certo paradigma de cidade – a polis (a política: autonomia e forma de governo), a civitas (cidadania: estatuto político do seu grupo social) e a urbs (edificação e infra-estrutura) – está, hoje, obsoleta. Na metrópole neoliberal há apenas urbs: infra-estrutura e capital humano precarizado e desqualificado politicamente. A divisa dessa metrópole, para cuja oração matinal estamos todos mobilizados, já não seria aquele ecuménico “Urbi et Orbi”, mas o “Urbi et Uber”.”
Pedro Levi Bismark em "A Cidade na época da sua reprodutibilidade financeira”, texto publicado no Jornal Punkto
“No livro de 2014 de Jonathan Crary 24/7 - Late Capitalism and the ends of sleep (entretanto traduzido pela editora Antígona) diagnosticava-se como a atenção é captada sobretudo pelos meios digitais para fazer do ser humano um consumidor em todos os momentos, incluindo, cada vez mais, o único em que parecia haver protecção, o do sono. Teremos talvez de considerar, a par do reconhecimento de que os nossos sentidos seguem intactos, que a fuga potencialmente emancipatória é uma tarefa constante e a distracção a que estamos sistematicamente tentados encaminha muito mais para o negócio do que para o ócio.”
Mariana Pinto dos Santos sobre o livro de João Pedro Cachopo, "A Torção dos Sentidos - pandemia e remediação digital" (Edição Sistema Solar). Texto publicado no Jornal Punkto
Filipa
Todas as imagens desta newsletter são da minha autoria, fotografadas na baixa do Porto, em outubro de 2019.