Este foi o ano que menos pão fiz com as minhas mãos, e talvez também por isso, aquele em que mais vendi os cestos de fermentação da Mariamélia, que têm ido parar aos vários cantos do planeta: das capitais europeias às mais pequenas cidades do midwest americano; das costa australiana a ilhas canadianas com pouco mais de mil habitantes. Tenho conhecido um pouco mais do mundo, e em grande parte, da América do Norte, graças a este projeto. Cestos, apanhadores em zinco, chapéus e candeeiros têm saído das minhas mãos a cada semana que passa para espalhar o saber fazer nacional nos lugares onde já não se vislumbram objetos como estes. Tenho muitas dúvidas, todos os dias, sobre o valor daquilo que faço, mas sei que durmo tranquila em relação à forma como o faço: preços justos, relações transparentes com artesãos, fornecedores e clientes, e um desígnio de falar sobre como as coisas são feitas, e por quem, aos que se interessam por isso.
Gosto da ideia de não ter de caçar clientes, nem de elaborar grandes estratégias de marketing, gosto de estar no meu canto e de pensar sobre objetos e origens e escrever sobre isso, livremente, sem prazos ou obrigações. Gosto da ideia de poder atrair pessoas através de objetos ou através de ideias: uns vêem pelos primeiros e outros pelos dois, mas a maioria está disposta a levar uma parte do que tenho para oferecer, e isso basta-me.
Não tenho falta de ambição e ideias nunca me faltam, mas os últimos anos ensinaram-me que há tempo e tempos para tudo, e que, mais cedo ou mais tarde, chegarei àquilo que quis fazer desde o início deste projeto: criar novas peças junto com artesãos e criadores, misturando no mesmo projeto e sob o mesmo chapéu, os objetos feito por designers licenciados e artesãos com o antigo ensino básico. O desígnio (e insisto nesta palavra, que não é usada o suficiente), é misturar mundos para que o resultado seja sempre muito mais que a soma das partes, ou que um exercício de estilo sobre a manufatura nacional. A ideia é revelar diferentes formas de fazer, diferentes linguagens, que podem e devem falar entre si, tal como os objetos que reunimos em casa devem ser diversos e ecléticos, cada um na sua função cumprindo um papel, seja de memória, de narrativa, de elevação pela arte ou pelo ofício que lhe deu origem, num conjunto de características e de histórias que fazem parte de cada um de nós.
Tenho pensado bastante sobre o texto da última newsletter, que comecei a escrever a meio do verão e enviei no início do Outono. Era um texto que falava sobre como o discurso da necessidade de parar, de fazer férias, é apenas mais um mecanismo de manipulação da força de trabalho que são os nossos corpos e as nossas cabeças. De como a pausa é apenas uma desculpa para voltarmos com mais energia ao tempo produtivo, de como esse tempo de pausa já não é um fim em si mesmo. E surgiu-me este imenso paradoxo de escrever sobre a importância de parar, realmente parar, mas não conseguir abrandar, não conseguir desligar, mesmo quando o meu corpo pede em desespero.
Por vezes escrevo no plural — porque este projeto faz-se, na verdade, a muitas mãos, — mas quem põe a Mariamélia a andar, em todos os sentidos, sou eu e as minhas duas mãos. Que procuro as matérias primas e organizo a produção de costura para os cestos, que encomendo cestos, candeeiros e chapéus conforme os stocks e as encomendas, e que os vou buscar aos produtores. Que embalo cada encomenda, e que levo cada uma à loja dos correios mais próxima para que cheguem aos cinco cantos do mundo. Que respondo aos vossos emails e aos clientes que não sabem onde estão as suas encomendas enviadas há um mês (céus!), que prevejo stocks de acordo com o numero de encomendas, e ainda faço fotografias, faturas, posts, pagamentos, contabilidade (desorganizada) e o diabo a sete. Que encontro tempo para ir à baixa do Porto comprar material de embalamento. Que vou zonas industriais procurar matérias primas e outros materiais. Que organizo um escritório/atelier/oficina dentro de casa. E ainda passo algumas horas com as folhas de cálculo a inventar novos produtos e novos preços, a garantir que tudo isto não é só amor à camisola, mas que se pode tornar numa ocupação financeiramente sustentável. Duas mãos, duas pernas, uma cabeça, algumas condições de sáude, e ainda um segundo trabalho em part-time deixaram-me mais ou menos de rastos. É muito comum acharmos que não estamos a fazer “nada de mais”, ou que podíamos até “fazer melhor” ao mesmo tempo em que estamos a esticar a corda ao máximo. Só quando ela rebenta é que percebemos o que estavamos a fazer: ao nosso corpo e à nossa cabeça.
Ignorar o que nos diz o corpo é uma filosofia de vida grandemente enraizada no tempo sem entropia que vivemos actualmente. Tudo é líquido, tudo é fluído, os contornos dos diferentes tempos esbatem-se, podemos ser e fazer tudo o que queremos, quando queremos. O resultado é tantas vezes fazermos cada vez menos e pior, porque a sensação de assoberbação inunda-nos (tantas vezes antes de começarmos cada tarefa) e acaba por nos paralisar. Não é à toa que se discute cada vez mais sobre a redução de horas da semana laboral para 32h — que se tornou mais premente após a experiência-limite da pandemia, em que o tempo do trabalho (e da escola, o trabalho dos mais jovens) entrou dentro de casa de uma forma quase transversal na classe-média.
Sabemos hoje que mais tempo nos locais de trabalho não é sinal de mais produção, mas de mais exaustão. Concentrar as horas de trabalho no espaço onde trabalhamos presencialmente com os outros poderá ser uma solução nas profissões onde o grosso do trabalho é altamente individualizado e acontece essencialmente na esfera do digital. O tempo esvai-se porque as solicitações são imensas e se multiplicam, as cidades aumentaram muito os seus problemas de trânsito, e aquilo que nos pedem é cada vez mais trabalho que poderia ser feito por computadores. Somos cada vez mais escravos das máquinas que eram suposto libertarem-nos para todas as outras tarefas que nos humanizam. Mas divirjo.
Falar sobre tempo e trabalho — no seu sentido mais político — tem sido o foco do meu projeto, mas a variável que me escapava era a da (minha) saúde. Sem ela, não há tempo e muito menos trabalho que me salve. “Saúdinha!”, desejam-nos as pessoas mais velhas da nossa vida quando ainda achamos que somos imortais ou imunes à falta dela. Até que nos toca a nós este jogo da mortalidade, em que nunca sabemos bem quão sério é o risco que corremos, e passamos ao jogo das tentativas, em que vamos enganando o corpo, testando os seus limites. Há uma semana atrás percebi que tinha passado os meus próprios limites, em várias vezes, e sem qualquer motivo racional. A cabeça, tantas vezes, transforma-se num computador estúpido, a repetir as mesmas tarefas em loop, até ao crash final — ou então somos nós com esta exposição patológica à tecnologia que mimetizamos o comportamento das máquinas. A única ideia verdadeiramente importante que quero deixar é esta: não vale a pena. Sermos robots de nós mesmos é demasiado desperdício de vida. Principalmente quando já sabemos, instintivamente, que os nossos limites vão-nos ser revelados com toda a dor e sofrimento que podíamos ter evitado. Não vale a pena. É que nem se trata de obstinação, mas de cegueira.
Há umas semanas atrás fui ver uma peça de teatro sobre a cegueira. O Ensaio sobre a cegueira de Saramago, adaptado por duas companhias de teatro, uma portuguesa, outra catalã, que duplicavam as personagens da história enquanto interpretavam o texto, nas duas línguas. A certa altura, nos muitos atores que vagueavam pelo palco, aquela cegueira começava a parecer natural, enraizada nos seus movimentos, como uma presença em si mesma, uma outra personagem. Esse efeito da dramaturgia, funcionava, na peça, como espelho da nossa própria alienação coletiva: de como somos, em alguma altura, aquelas baratas tontas desorientadas e em desespero, que se vão adaptando à barbárie, sem querer ver o que nos é revelado sempre (mesmo cegos): a verdade interior das coisas que queremos ignorar em nós mesmos.
Que possamos virar-nos para dentro o suficiente neste próximo ano para nos vermos em relação ao mundo, e não apenas o contrário. Saúde, muito tempo para a introspecção e paz interior são os meus desejos para 2023. Bom ano!
Apenas para dizer que leio sempre com muito entusiasmo a tua newsletter, pois o que escreves é sempre super pertinente, e por isso obrigada. E obrigada também pela sugestão da série Separação, gostei muito e estou à espera com ansiedade pela 2ª temporada. Um bom e próspero ano de 2023!
Beijinhos