Pausa
Ouvimos dizer que é urgente desligar, mas nunca estivemos mais desligados do mundo e de nós mesmos.
Seis meses depois, esta newsletter volta à rotina. Levei muito tempo a escrever este texto. Não porque tenha sido particularmente difícil escrevê-lo, mas porque tenho pouco tempo para o escrever como quero (e preciso). Não falo de uma escassez de tempo no sentido quantitativo mas qualitativo: falta-me o tempo necessário para poder ter uma atividade intelectual sem as pressões do quotidiano e da gestão diária de um pequeno negócio. Falta-me o mesmo vazio de que falo neste texto a propósito do período de férias que terminou, para a maioria, nos últimos meses.
Quero falar do privilégio que é poder abrandar num mundo que somos obrigados a viver “na ponta dos pés”, em permanente vertigem. Em que a cultura do “slowness” é importante para descobrirmos outras formas de viver, mas que inserida num discurso de marketing, de lifestyle, torna-se facilmente num discurso hipócrita embelezado por imagens zen. Abrandar é um privilégio, atualmente, seja onde for. E não é a noção de culpabilização que devemos trazer a este debate mas a consciência de que há algo de profundamente errado num mundo onde ter tempo e viver sem ansiedades permanentes se transformou num privilégio de classe.
Agora que terminam os meses em que tanta gente vai de férias, e que se assemelha tantas vezes a uma segunda rotina: reservar, comprar, organizar, viajar, descobrir, visitar, fotografar, comprar mais — talvez possamos reservar algum tempo a refletir porquê que o reduto da pausa anual se tornou também ele num “projeto” em vez de um abandono a um tempo mais lento e fluído, a que a estação mais quente nos convida. Em vez disso, o que vemos é cada vez mais um tempo de ócio que se configura como um vazio a preencher, sem lugar para o aborrecimento ou a ausência de planos. A vida como um extenso horário com blocos de tempo a preencher à exaustão, sem tempo para o improviso, o espontâneo ou simplesmente o “dolce fare niente”. O tempo de férias como um grande plano de visitas, horários e burocracias variadas para aceder ao projeto de turismo contemporâneo: a vertigem do reconhecimento de um território em tempo record, sem tempo a perder, sem espaço sem ser percorrido ou registado seja por imagens ou vídeos, e uma coleção de experiências “obrigatórias”. A eliminação da possibilidade do devaneio, da exploração acidental numa busca por aquilo que é espontâneo e não expectável, pela possibilidade de surpresa.
Como millenial nascida nos meados dos anos 80, a minha infância e especialmente, o tempo de férias (que parecia quase infinito), era composto essencialmente de não fazer nada. E sem irmãos para brincar e muito tempo passado em parques de campismo, grande parte das minhas férias faziam-se de jogos de cartas, a ler numa cama de rede pendurada entre duas árvores, ou a fazer passeios pelo campo ou pelas vilas e cidades que visitava.
É-me estranho ainda, agora adulta, esta percepção do tempo de lazer como um trabalho, um verdadeiro projeto, um tempo pré-programado à exaustão, e por vezes, sem pausas, sem vazios, sem o aborrecimento de um dia passado na praia ou num piquenique que se prolonga até ao fim da tarde. Ou a possibilidade do melhor de umas férias ser andarmos perdidos no emaranhado de uma cidade ou de uma serra. Mas se a forma como vivemos o tempo de ócio se alterou, o motivo para o fazermos é hoje mais intensamente difundido que nunca. É urgente desligar!
“Hoje proliferam os convites a desligarmo-nos. Das redes sociais, do email, das plataformas, para a nossa desintoxicação digital. E também do ritmo acelerado, produtivista, em que fazemos do tempo não uma casa habitada mas uma indústria de alto rendimento. Porém, este convite é feito para que, desligando-nos, possamos restabelecer a energia e a capacidade de voltar a mergulhar na mesma indústria. Elogia-se a capacidade de desligar como uma válvula de escape que pode ser ativada, um benéfico apagar as luzes até o dia seguinte, para equilíbrio de vida, matéria de saúde, até medicamentável. Como o descanso necessário para recuperar a força de trabalho, os comprimidos para dormir, o lazer indispensável para que o trabalho não perca todo o sentido. E, claro, conhecidos e disseminados os benefícios da prática, desligar-se-ão mais os que à partida já têm mais descanso e lazer, aqueles com mais oportunidades num mundo social cuja regra de funcionamento é a economia da desigualdade. Se puderes — publicitará o sistema socioeconómico — dá uma volta ao mundo e depois recomeça com mais força de onde paraste.
Esta propaganda ao direito a desligar propõe a ilusão radical de que andamos excessivamente ligados, quando na realidade nunca andamos tão desligados do mundo e de tudo o que nele não está sob o controlo do sistema de produção global — que é também uma web global e uma organização socioeconómica que se apresenta como única e inescapável.”
André Barata1
Se por um lado há um privilégio inescapável dos que podem desligar-se (do ritmo produtivista), há por outro lado um privilégio acumulado pelos que à partida já o fazem regularmente. No entanto, a motivação que é difundida para a procura desse tempo de ócio é poder descansar para “voltar em força” com “baterias recarregadas”. No fundo, estas metáforas aplicam-se: hoje vêmo-nos tal como máquinas, como afirma o mesmo autor numa entrevista recente:
“O problema não é as máquinas virem fazer aquilo que nós fazemos, é nós tentarmos fazer aquilo que as máquinas fazem. Qualquer pessoa que está num call center está a fazer o que uma máquina faz. Eu, enquanto académico, estou a fazer o que uma máquina faz, que é produzir papers de 15 dias em 15 dias. Estamos a pedir, seja na indústria, seja no trabalho mais intelectual possível, que todos estejamos no regime maquinal.”
Como libertar-nos desta lógica maquinal que parece tomar o nosso trabalho, mas também a nossa rotina, e até o nosso lazer? Que quer preencher qualquer bloco de tempo com métricas, objetivos, resultados, algoritmos e fórmulas que traduzem esta imensa desconexão existencial com o mundo, e connosco mesmos. E tal como uma panaceia, nos quer convencer que temos de nos desligar e reconectar connosco mesmos, apenas para podermos voltar a conectar-nos, mais tarde, novamente à máquina. Como um “detox digital”, um afastamento temporário do tempo social que se passa nos ecrãs, da rotina absorvente, sem espaços vazios, cuja função é apenas poder regressar novamente às mesmas rotinas e às vivências mediadas por uma lógica industrialista, em que as relações pessoais e subjetivas se medem por números e algoritmos. Uma descompressão das máquinas humanas em que nos tornamos, ligados a uma vivência digital ruidosa que media todo o nosso tempo, incluindo o tempo dedicado ao descanso e até ao sono.
Quando interrompemos ou terminamos a jornada dos nossos trabalhos mediados por ecrãs, dizemos ao computador para “dormir”: sleep. Uma metáfora humana para a máquina, a par das metáforas maquinais e industriais que usamos para as pessoas: descarregar, desligar, desconectar. Um vocabulário biónico, que nos parece fazer ganhar qualidades robóticas e imaginar um futuro em que nos fundiremos nas máquinas e elas em nós, sem nos apercebermos que esse futuro já está aqui, no nosso bolso, na nossa mesa — de trabalho, de jantar — à distância de um dedo que aperta o gatilho da realidade paralela das redes sociais e das apps.
E, no entanto, a cultura do “slowness” e do “detox digital” actua no terreno pantanoso das inseguranças individuais, tentando pessoalizar os problemas sistémicos que afectam a todos de formas muito distintas. Incute também a ideia de que há algo de muito perverso no direito ao descanso quando ele não é um fim em si mesmo, e deve apenas ser legitimado quando serve o propósito de podermos voltar ao sistema, com um novo vigor ou num formato aparentemente diferente.
“O sabat, que originalmente significa “suspensão da atividade”, é um dia do não-fazer, um dia liberto de qualquer finalidade, ou, nas palavras de Heidegger, de toda a preocupação. É um dia de intervalo, de interlúdio. Após a criação do mundo Deus declarou que o sétimo dia seria sagrado. Sagrado não é, portanto, o dia da finalidade, mas sim o dia do não-fazer, um dia em que seria possível a utilidade do inútil. É o dia do cansaço. O intervalo é um tempo sem trabalho, um tempo de brincadeira, que se afasta igualmente do conceito de tempo heideggeriano que, em boa verdade, continua a ser um tempo de trabalho e de preocupação.”
Byung-Chul Han2
Descobrir a (boa) inutilidade da pausa, do intervalo, o fruir do tempo sem finalidade. Essa deverá ser certamente uma noção a perseguir, para que, no futuro, não nos assemelhemos a autómatos sem livre-arbítrio, indivíduos sem um ponto de fuga, sem um escape possível do funcionalismo que nos quer transformar apenas em seres industriosos e diligentes. Indivíduos que se limitam a responder ao sistema hipercontrolado de um Big Brother. Talvez a pausa — e o direito a ela — se esteja já a tornar numa verdadeira rebeldia.3
André Barata, “O Desligamento do Mundo e a questão do Humano”. Documenta Sistema-Solar, 2020.
Byung-Chul Han, “A Sociedade do Cansaço”. Relógio D’Água, 2014.
Obrigada por tão interessante e pertinente texto.
Pertinente e muito bem escrito!