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Vou-me confessar: sou muito pessimista em relação às questões da sustentabilidade ambiental e não acredito que esta possa ser alcançada pelo consumo. Acho que o importante é forçarmos mudanças de paradigma, e isso só lá vai com alterações de fundo. As pessoas terão de se ver a braços com a ideia de escassez ou de limites (ao consumo) para haver a possibilidade de uma desaceleração verdadeira. Se não será só mais business as usual.
A urgência climática é uma realidade que nos ultrapassa de tal forma que a transformamos numa ideia abstrata e longínqua: enquanto se prevêem cenários catastróficos para um futuro próximo, os vários eventos climatéricos e ambientais vão-se desenrolando perante os nossos ecrãs ou nos nossos quintais: secas, cheias, tempestades, temperaturas extremas, etc. É necessário repensar todos os sistemas: os políticos, os sociais, os económicos, para que se possa construir uma nova forma de relação com a Terra. As crises que vivemos atualmente cada vez mais nos demonstram isso, que este esforço absurdo por manter um estilo de vida assente num extrativismo compulsivo só cria tensões permanentes pelo controlo do território, da energia e do poder militar. E no meio dessas disputas estão milhares de pessoas à míngua, a tentar safar-se o melhor que sabem nesta selva com regras muito diferentes para todes.
A Naomi Klein tem falado muito sobre isto. Os ambientalistas que nos falam (há décadas) da crise climática também: isto não vai lá com falinhas mansas e greenwashing. Temos de nos preparar para viver de outra forma, e isso implica aceitar a própria ideia de crise, o que é muito traumático, por certo. Não há grandes mudanças sem períodos instáveis, e eu acho que já estamos nesse período de crise há algum tempo. A boa notícia é que depois de piorar muito só pode melhorar. A má notícia é que ainda falta muito para esta crise civilizacional terminar. E enquanto não melhora, enquanto o futuro nos parece incerto e obscuro, há a possibilidade de o imaginar como poderia ser, sem um optimismo infundado, mas norteados pela certeza de uma crise ambiental que ouvimos em tempos que nos levaria ao espaço, numa fuga sem precedentes. Estou em crer que todo o pensamento não racionalista nos ajuda mais em momentos de crise e de cisões sociais do que o pensamento analítico e pragmático. O pragmatismo serve o plano das ações: se não sabemos ainda como atuar ou por onde começar, imaginar soluções, formulações novas e sistemas não inventados ainda, deverá ser essencialmente libertador, numa era em que o pensamento criativo parece ciclicamente oprimido por um funcionamento social economicista, que tudo privatiza.
O espaço para o sonho reduziu-se, a criatividade foi transformada em sistema de pensamento ao serviço de um sistema capitalista em que tudo é mercantilizado, a começar pela vida privada. A criatividade ao serviço do empreendedorismo, do funcionalismo económico, do sucesso financeiro — das empresas, das instituições e do território. O espaço para pensar livremente, para deambular criativamente, sem regras, escasseia. Deixamos de nos perder em discussões ideológicas para defender “lados” e visões forçosamente antagónicas, para nos respaldarmos na nossa bolha social, cada vez mais restrita e incompleta.
O século XXII
Quantas vezes já ouviste referências ao século XXII? Num mundo em aceleração constante, o ensejo pelo futuro deveria ser natural, porém, nos últimos anos, as referências às imagens do futuro escasseiam, parecem quase autocensuradas. O século XXII não é sequer um vislumbre, tornou-se uma ficção científica rejeitada. Como se imaginássemos a vida apenas no curto prazo, e ignorássemos conscientemente a ideia de herança. Numa sociedade obcecada pelo passado, ,especialmente pelo século passado, corremos o risco de passar metade deste século a sonhar com o anterior: a romantizá-lo, a transformá-lo num produto, num ideia do que foi, do que queremos que signifique neste momento histórico. (Ver a ideia de “Retrotopia” de Zigmunt Bauman).
“Há algumas espécies de libélulas cuja sobrevivência depende da quebra da película superficial da água de um rio. A fêmea a rompe (…) e depois nada pela coluna de água para pôr os seus ovos no leito do rio. Se ela não conseguir perfurar a superfície, ela não pode fechar o círculo da vida, e sua prole morre com ela.
Esta também é a história humana. Se não conseguirmos furar a superfície vítrea da distração, e nos envolvermos com o que está por baixo, não garantiremos a sobrevivência de nossos filhos ou, talvez, de nossa espécie. Mas parecemos incapazes ou relutantes em quebrar o filme da superfície. Eu penso neste estranho estado como a nossa “tensão superficial”. É a tensão entre o que sabemos sobre a crise que enfrentamos, e a frivolidade com a qual nos distanciamos dela.”
A primeira vez que ouvi alguém fazer referências ao século XXII num discurso político foi uma jovem política negra, portuguesa. Há poucos anos atrás, ela atrevia-se a falar do futuro. Esse atrevimento — não só o de imaginar um futuro inclusivo, como o próprio ato de falar — foi severamente castigado. Até hoje. E não só pelas “pessoas do costume”, também pelas pessoas “dos costumes”, que foram desenhando um monstro à volta de um ideia de ódio que era só o ódio delas. O futuro foi morto ali mesmo. O futuro também morreu do outro lado do Atlântico para milhares de pessoas depois do assassinato brutal de uma jovem política negra, Marielle Franco, até hoje sem culpados condenados. Foi mais uma forma de cortar as pernas a quem queria começar a correr, em busca do futuro e da possibilidade de ter um para os seus.
Enquanto continuarmos cobertos por esta camada de pó (e de culpa) que vem do século passado, o século das monstruosidades, não poderemos começar a escrever os próximos capítulos: a aceder a outras ideias, a outros porta-vozes, a outras noções de humanidade, de igualdade, e de justiça. Há demasiado pó e sujeira entranhada na cultura ocidental e europeia para que possamos ultrapassar esta(s) crise(s). É preciso, senão urgente, falar dos elefantes na sala: do imperialismo, do europeísmo, do capitalismo (selvagem), do economicismo, do neoliberalismo. Das coisas que os perpetuam, como o racismo e o machismo, a xenofobia e a homofobia. Já não basta aprender palavras novas, é preciso aprender a usá-las: temos um dever de nos educarmos, de nos corrigirmos, de mudar pelo outros (e pelos nossos). De não ficar presos/as ao um passado idealizado, um passado com caravelas e “descobrimentos”, que escolhemos voltar a romantizar neste século, como resposta uma crise sócio-economica e identitária profunda. Uma “portuguesização” forçada, que começa com essa ideia de um passado colonialista e imperial, a mesma obcessão saudosista que nos impede de compreender tudo o que somos agora, e não o que algumas elites querem à força continuemos a significar. Os sinais dessas negações são constantes e evidentes, e estão por toda a cultura popular, da canção vencedora do Festival da Canção à narrativa fastidiosa e trapaceira da falta de liberdade de expressão que os opinion makers profissionais trazem aos media tradicionais, numa vitimização vergonhosa.
Os ódios que se têm cimentado nas sociedades europeias, como se tivessemos voltado cem anos atrás — os neofascismos, a xenofobia, as políticas misóginas e anti-LGBT — têm sido alimentados largamente por esta recusa em olhar o futuro, em ceder na direção de uma (con)vivência verdadeiramente comunitária, igualitária, e em equilíbrio com o planeta. São mais uma forma de legitimação do status-quo, criando fronteiras cada vez mais rígidas e conservadoras, cercando as possibilidades de acesso à riqueza e ao poder num elite auto-proclamada “de bem”, seja pelas suas posições políticas ou crenças religiosas. O que nos tem escapado largamente é que estas posições são feitas sempre contra o “outro” — o estrangeiro, o imigrante, o “infiel”, as mulheres, as pessoas LGBT. Numa sociedade em que se banaliza o ataque aos direitos dos outros, construindo assim a categoria do “outro” como “invasor”, as posições políticas ditas “moderadas” têm criado um estado de atrofia da justiça social, em que se misturam os “extremos” num manobra clara de fazer dos grupos oprimidos os bodes expiatórios do sistema (vejam-se por exemplo, os debates acerca do RSI em Portugal, ao qual nem os ativistas ambientalistas escaparam, tal foi um argumento central na narrativa da nova direita liberal).
O divórcio das populações urbanas e urbanizadas com o mundo natural, com os seus recursos e a sua exploração não é um acidente de percurso, mas uma característica essencial de um sistema que projeta a alienação do meio natural através de narrativas que nos apresentam a vida moderna como uma absoluta inevitabilidade civilizacional, como se a evolução da espécie fosse unívoca, e portanto, fazendo-nos acreditar que qualquer alternativa a estes sistemas é uma utopia irresponsável. Este falso pragmatismo tem escondido uma agenda cuja única intenção é evitar alterações sistémicas ao nosso modo de vida, garantindo que as mudanças são apenas cosméticas — como foi tão óbvio em Glasgow, durante o enorme falhanço que foi a “Conferência do Clima” do ano passado.
Deixo-vos com uma das inspirações para este texto e com a ideia mais importante deste epoisódio do Greg News, do ator e comediante Gregório Duduvier.
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