O pão como metáfora do início das coisas é uma imagem antiga: precisamos de comer para existir, e o pão é o alimento mais celebrado da humanidade porque nasce com as primeiras civilizações — no sentido em que o pão tomou lugar nas comunidades não-nómadas que se haviam fixado e iniciado projetos agrícolas com a plantação de cereais. O pão significa assim a capacidade humana para extrair da terra a subsistência de um grupo durante longos períodos de tempo, e por isso, a capacidade de criar raízes num lugar, de criar comunidades fixas que mais tarde se transformaram em vilas e cidades.
Uma das narrativas que me inspiravam quando (re)comecei este projeto eram os objetos associados às rotinas do fazer do pão — fruto de alguns revivalismos, que há cerca de 10 anos começaram a fazer parte da vida doméstica de muita gente. Voltar ao pão artesanal, feio em casa, foi um fenómeno social tão interessante e rico que me continua a fascinar até hoje. O fenómeno que mais me fascinou foi o de podermos ensaiar uma pequena revolução doméstica, como aquela feita pelas mulheres que faziam o pão comunitário, há 50-60 anos, no nosso país. Um revolução tímida que parecia subtrair gente com todos os tipos de formação profissional à força de trabalho para os transformar em padeiros e padeiras de mão cheia. Fiz entrevistas sobre essas mudanças de vida e conheço hoje pessoas que já tiveram outras profissões antes de meterem as mãos na massa, quase todas altamente qualificadas. A maioria hoje tem micro-negócios semelhantes ao meu.
Esta pequena revolução do pão — realmente global, mas claramente ocidentalizada, deu-me confiança e a persistência necessária para continuar a produzir estes objetos do passado: os bannetons franceses, em vime e linho. Sempre na esperança de encontrar um canal que encontrasse as muitas padeiras e padeiros de escala doméstica que procurassem um objeto tão belo, justo e intrinsecamente bom quanto o pão que desejavam fazer. A equação sempre foi: se queremos a melhor farinha e dedicar o tempo que temos, então os objetos que usamos na cozinha devem ter a mesma qualidade. As matérias devem ser tão nobres (e orgânicas) como os ingredientes. Estes preciosismos nem sempre são válidos, mas neste caso, levedar massa em cestos de plástico era uma coisa que não (me) fazia sentido. Tal como não me fazia sentido comprar bannetons feitos no sudoeste asiático, se os podemos fazer (ainda melhores e mais bonitos), aqui mesmo ao lado, no Minho (ou nas Beiras).
Este cestos de fermentação foram os objetos que sintetizaram a abordagem que eu queria fazer aos objetos de base “tradicional” e “artesanal”. Como designer não me interessava minimamente desenhar novos objetos, nem explorar novos materiais; só pensava naquilo que já tinha sido tão bem feito no passado, e infinitamente testado, e que podíamos apenas adaptar às técnicas e às matérias disponíveis aqui e agora. O mote “pensa globalmente, age localmente” nunca fez tanto sentido. Este cestos de fermentação da tradição de panificação francesa eram um objeto não muito longínquo, que havia ganho uma certa reputação internacional, principalmente nos países anglo-saxónicos, graças à influência da nova vaga de padarias artesanais como a famosa Tartine de São Francisco. Parecia haver um movimento de volta “às origens” com inspiração no pão de antigamente, que atraía gente de todas as áreas e operava uma verdadeira revolução na alta-cozinha. No panorama gastronómico e das cidades (gentrificadas), as padarias passavam a ser realmente cool.
Transformar um big business como a panificação industrial — que definiu muito do que é a indústria agro-alimentar — num potencial gastronómico de alta-qualidade traduzido em milhares de micro-empresas por todo o mundo parecia uma utopia boa demais para acreditar. Foi até começar a ler sobre os conflitos da famosa Tartine (que entretanto tinha dezenas de lojas nos EUA) com os seus trabalhadores sindicalizados, ou quando percebi o verdadeiro franchising em que acabou por se transformar a mais famosa padaria de fermentação natural de Lisboa, que percebi que esta nova história libertadora do pão das mulheres, do pão libertado do seu jugo agroquímico, de volta às raízes, era apenas mais um caminho que este sistema económico não nos ia deixar percorrer por gosto — mas apenas por ganância. Parecia só haver espaço para o negócio do pão, numa escala que quer eliminar concorrência e encontrar parceiros que não são os mais humildes empresários, mas apenas as grandes marcas de distribuição. E com estes mega-negócios vem o greenwashing do pão, que também o há: em que nos convencem que esse pão “do bem” é apenas feito com cereais nacionais, cultivados ali entre o Sado e o Tejo, quando estamos cansadas de saber que, em Portugal, importamos cerca de 80% de todos os cereais que consumimos, e que importamos atualmente mais de 90% do trigo que consumimos.
“A dependência de Portugal face ao exterior no que toca à autossuficiência de cereais tem vindo a agravar-se e a estratégia desenhada pelo Governo não tem invertido a situação, pelo contrário. De acordo com o Público, a taxa de aprovisionamento de trigo em Portugal é de 6,3%, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), e a de milho é de 23,7%. A maioria dos cereais consumidos em território nacional vem de importações.”
Entretanto, há dezenas de micro-padarias de fermentação natural em Portugal que continuam pequenas e honestas, a fazer marketing através da qualidade inerente dos seus produtos. E são estes micro-negócios que inspiram os negócios do pão em grande escala a usar “massa-mãe” como um isco (literal) para atrair clientes desprevenidos, no que imagino sejam os sítios que mais pão vendem em Portugal: as grandes superfícies, vulgo super e hipermercados. Mais que uma revolução na indústria da panificação, este parece ser apenas um novo capítulo na história do pão e dos negócios. Negócios cada vez maiores e mais ambiciosos, que prosperam particularmente nas cidades gentrificadas, e contribuem na sua quota parte para esse processo (ver este artigo, como exemplo do fenómeno).
Longe de querer argumentar contra fazer do pão de fermentação natural um negócio, — é inegável que a transformação da qualidade do pão que comemos já não é uma miragem, como era há anos atrás — o meu ponto fundamental tem que ver com a intensidade e a força demolidora do capital sobre os negócios pequenos, para elevarem outros a forças de mercado sem competidores. Há uma perversão dos valores deste pão (e pastelaria) mais honesto e de maior qualidade, que parece perder-se quando tudo o que vemos como resultados destes processos de desdobramento de pequenos negócios em negócios de escala, são direitos dos trabalhadores em causa, greenwashing e um reforço da gentrificação urbana. Nenhuma destas consequências são “danos colaterais”, todas elas são características essenciais dos negócios do comércio de rua no século XXI: proliferação de lojas no território de forma a neutralizar a concorrência e fazer crescer os rendimentos, manutenção de salários baixos ou/e ausência de direitos dos trabalhadores, e uma implantação nos pontos-chave das cidades que minam a possibilidade dos negócios mais antigos e tradicionais permanecerem porque competem com uma capacidade de investimento muito mais alta. A capacidade de construir uma máquina de marketing que se baseia em chavões e em greenwashing também aumenta na medida dos próprios negócios, e são chave para manter e converter mais clientes para os valores da marca.
E se em vez de “valores de marca” valorizássemos pessoas? Pessoas concretas e pequenos grupos de pessoas interessadas honestamente em construir, não um império numa cidade, mas uma micro-revolução, à sua escala, com direitos laborais e pão de qualidade sem falsidades, e sem o doce acúcar do greenwashing, que faz parecer tudo perfeito e próspero? Que tal apoiarmos as padeiras e os padeiros que fizeram uma jornada de mudança de vida, que são hiper-honestos nas suas partilhas (que nem sempre são optimistas), e que nos confrontam com as coisas agri-doces da vida, e ainda nos dão pão óptimo? Que não são influencers porque não têm tempo nem perfil para essa vida “dupla”, que partilham o que sabem sem peneiras, que nos comunicam a sua paixão pelo pão, e por um mundo mais justo, já agora.
Numa nota final, deixo este belo texto da Lexie Smith do projeto Bread on earth, publicado a propósito do pão judaico matzoh, feito durante a celebração do Passover — uma data próxima da Páscoa dos católicos. É um pão sem fermentação porque, segundo a história, os judeus em fuga do Egipto não tinham tempo nem lugar para a fermentação do pão. Não deixem de o ler e pensar nas entrelinhas desta reflexão: que mais uma vez, o pão, sempre intrinsecamente político, nos leva a fazer.
Algumas referências bonitas a propósito de pão:
Um livro
As Guerras do Trigo: Uma história geopolítica dos cereais de Scott Reynolds Nelson. Com tradução da querida Sara Veiga.
Um artigo
What Sourdough Taught Me, in the Pandemic and Beyond, New York Times
Um texto magnífico com ilustrações e infografias sobre os caminhos do pão durante a pandemia, pela incrível Lexie Smith.
Uma entrevista
Canal Pança: Enxoval
À amiga e padeira Lee Guimarães, alguém que mudou de vida para se dedicar ao pão de alma e coração.
Uma música
B Fachada, Padeirinha
Uma das músicas mais especiais do álbum “Rapazes e Raposas” do músico B Fachada.
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