Janeiro
Desde há bastante tempo que se difunde a ideia, de que os artesãos/ãs e artífices portugueses estão em vias de desaparecer. Há várias marcas (e até jornalistas) a insistir na ideia apocalíptica do “fim do artesanato”. A verdade é que, o artesanato, naquilo que é o seu sentido conceptual, já não existe há muito, muito tempo.
Neste sentido, o que temos hoje em dia é uma concepção largamente equivocada dos termos “artesanato”, produção artesanal” e “artesão/ã” que são confundidos e tornados equivalentes pelos mesmos agentes que nos querem convencer do "fim do artesanato". A verdade é que estamos rodeados de objetos artesanais um pouco por todo o lado, mas apenas alguns dos seus autores têm direito a um palco. Não falo que quem os desenha e projeta, mas de quem os faz. As "tendências" de consumo recentes de objetos produzidos com materiais naturais e de baixa tecnologia, como a cestaria, por exemplo, inundam o mercado de produtos artesanais feitos essencialmente na Ásia e no Norte de África. Todos teremos uma cesta “chinesa”, um banco de bambú da Malásia ou um cesto de palma marroquino em casa. Esta manufatura, largamente barata, tem proliferado nas coleções das marcas ocidentais que apelam à redução da nossa pegada de carbono e à nossa consciência ambiental — enquanto importam objetos artesanais a uma fração do que custaria fazê-los na Europa.
Bato muito nesta tecla porque acho que há, em Portugal, uma hierarquização daquilo que é considerado “artesanato” e do que é considerado um “produto artesanal”. Tal como parece haver um verdadeiro programa na distinção entre “artesãos” e “makers”, tal como se criou antes a distinção entre “artesanato urbano”, distinto (em quê?) de uma ideia-feita de artesanato que aconteceria, aparentemente apenas fora das cidades.
Durante muito tempo em Portugal, houve um grande esforço no sentido do conservacionismo dos objetos da tradição artesanal que foi decisivo para esta ideia de que existe uma quebra geracional na comunidade dos “artesãos/ãs” que parece levar o discurso público a anunciar a morte do “artesanato” e das práticas de quem o faz hoje em dia. Este discurso não poderia estar mais longe da verdade, e este gap geracional foi precisamente motivado pela romantização de um passado saudosista, representado por um conjunto de objetos e de práticas em relação às quais não houve um interesse de atualização e de as trazer para a contemporaneidade. Esta tendência está hoje largamente invertida, tanto mais há um diálogo ativo entre as novas gerações de artesãos/ãs e artífices e as mais diversas áreas criativas, como entre os profissionais liberais, cada vez mais interessados numa materialidade ancestral, mais ambientalmente sustentável e com um sentido de pertença territorial, que procura o diálogo com quem se dedica às práticas artesanais no nosso país.
Há uns anos atrás escrevi a propósito desta ideia:
“Não acredito que tudo é bom apenas porque é português e artesanal, acredito que os produtos são bons porque as pessoas que os fazem são os melhores naquilo que fazem (...) Porque acredito que ainda está tanto por fazer. Porque o “artesão” ainda é visto como uma profissão desacreditada e sem carisma. Porque um produto manufaturado ainda é comparado diretamente a um feito industrialmente. Porque o artesanato não se define por ser “urbano” ou rural. Se vivemos uma era em que esta categorias estão praticamente obsoletas — urbano/rural, artesanal/industrial, artista/artesão — é porque, além de palavras novas, precisamos de discutir sobre o que se produz e, principalmente, como se produz hoje em dia.”
Quando comecei este projeto tinha muita dificuldade em nomear as coisas da mesma forma que as via nomeadas por outros. A palavra “artesanato” é-me incómoda, a palavra “artesão/ã” soa-me ambígua; os termos “manufatura” ou “produção artesanal” sempre me pareceram mais amplos o suficiente para poderem incluir mais objetos, mas essencialmente, mais pessoas e mais práticas. Parece-me que sempre se tentou classificar os produtos num sistema dual, ora artesanal, ora industrial, quando esses significantes não são sistemas opostos, mas realidades paralelas, que se influenciam e dialogam. As “artes e ofícios”, que é um termo pouco utilizado no nosso país, e que remete diretamente para o legado dos arts and crafts britânicos do século XIX, é já uma terminologia pós-industrial. O ofícios ganharam um novo estatuto, e até um sentido político, após a Revolução Industrial. Há um passado e um contexto nas palavras e o seu uso também influencia os seus significados.
Falar de “artesanato” em Portugal parece prender-nos eternamente a objetos de sentido decorativista, de tanto que quisemos musealizar os objetos, fazendo deles clichés de pôr na prateleira, em vez de objectos úteis, usáveis, em consonância com os usos contemporâneos, e portanto, em permanente mudança e atualização. Sem visitarmos este passado saudosista e folclórico, onde foram sistematizadas as categorias identitárias de um povo, e na qual resistem as palavras que não nos permitem falar dos elefantes na sala, não poderemos chegar a um espaço de verdade e de honestidade em relação às artes e ofícios mas também às questões da identidade local e nacional. Pôr em causa o conservacionismo e o folclorismo com que se continua a tratar as artes e ofícios em Portugal — para não mencionar sequer o snobismo — é decisivo nesta conversa e poderá criar condições para juntar mais intervenientes nesta conversa que se quer ampla e horizontal.
Raquel: (...) (…) o nosso artesanato é bastante diferente do artesanato que se encontra no resto da Europa, pelo menos, ou do resto da Europa Ocidental. Porquê? Porque nós tivemos um processo de industrialização muito tardia portanto o artesanato permaneceu mais ou menos congelado durante muito mais tempo do que noutros países que tiveram uma Revolução Industrial no seu tempo. E isso tem vantagens e desvantagens, mas uma das desvantagens, acho eu, é esta falta de atenção ao artesanato. Portanto, ele foi ficando onde estava, foi ficando a ser feito pelas pessoas como era feito mas começou a perder uma coisa essencial do artesanato que é a função, que o distingue da arte, por exemplo. Ele cria objetos que têm um razão de ser, cria objetos que vêm da necessidade e há um saber fazer que é associado à produção desses objetos (...)
Filipa
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