Como falar do Portugal manufatureiro?
Novembro
Este mês estou de volta ao formato long-read, com uma reflexão sobre território e identidade nacional, inspirada pelos discursos à volta dos produtos "made in Portugal".
Quando tive esta ideia, há uns anos atrás, de reunir um conjunto de objetos feitos em Portugal, em oficinas de artesãos mas também em pequenas fábricas, levantei a hipótese de valorizar a marca divulgando os seus autores: falando de quem fazia cada peça, e mostrando retratos de cada uma destas pessoas. A primeira reação que ouvi foi que isso era um grande disparate porque as pessoas iam preferir comprar diretamente a essas pessoas e não a mim. Ainda hoje penso nesta ideia e de como ela foi fundamental para construir aquilo em que acredito com a Mariamélia. Não é a ideia de revelar as pessoas por trás dos produtos que é transformadora — esse é um princípio seguido por muitas marcas antes da minha — mas a forma como quis falar de um país através das pessoas: o que fazem, onde fazem, como fazem? Esta é uma missão em contínuo melhoramento, e que levo muito a sério. Porque em verdade, acho que o que realmente interessa são sempre as pessoas: os objetos que fazemos e compramos são apenas uma outra forma de comunicação, uma forma de estarmos e sermos em comunidade, e isso, é o maior valor que nos move, muito mais que uma ideia (feita) do país que somos.
Esta reflexão veio a propósito de um texto que escrevi recentemente sobre marcas portuguesas cuja comunicação destaca a ideia de “orgulho” na produção nacional. E de como muito deste discurso está mais baseado em chavões nacionalistas do que naquilo que realmente importa: quem faz, como faz, onde faz? Quem são as pessoas por trás de cada produto? Quão justas são as suas condições de produção? Em que geografias, em que lugares são feitos os produtos “made in Portugal”? Onde fica este Portugal manufatureiro de que cada vez mais ouvimos falar? Será que sabemos da imensa indústria de pequena escala do concelho de Barcelos, ou das dezenas de fábricas têxteis dos arredores de Guimarães, ou da vila de cesteiros de Gonçalo, no concelho da Guarda, ou das muitas pequenas olarias do Baixo Alentejo, ou da cestaria de empreita feita na zona de Loulé? Se há nomes mais famosos como o da Marinha Grande, especializada na produção de vidro, ou das Caldas da Rainha, secularmente especializada na cerâmica, ou de Paços de Ferreira, capital da marcenaria especializada, outras zonas do país são desconhecidas pelas suas especializações locais. Ou mesmo pela ausência de especializações, como no caso de Barcelos, que é paradigmático na diversidade da sua produção artesanal e industrial, desde o têxtil à cerâmica, da cestaria à latoaria.
A intenção que surgiu naturalmente com este projeto foi precisamente afirmar uma ideia de portugalidade que é baseada numa ideia de identidades diversas, as dos artesãos e produtores que conheci, unidas por um território comum. Todos eles e elas são muito diferentes entre si, mas partilham um mesmo país e uma mesma língua. E é neste território, e numa partilha daquilo que existe no território, da sua cultura, que nos ligamos uns aos outros. É deste sentimento que se deve fazer a alusão a uma ideia de país, muito mais que de sentimentos de orgulho ou glória, que nos falam apenas de uma ideia de grandiosidade vazia — e tantas vezes, piscam o olho a ideais que julgamos enterrados. Não se deve tratar de admirar os grandes feitos, mas as pequenas ações, os gestos individuais do quotidiano que nos ligam e nos fazem, em comunidade, atingir coisas enormes. O argumento mais importante na marca “Portugal” parece-me ser precisamente a escala: com poucas pessoas, em pequenas oficinas, ou em pequenas empresas, fazem-se coisas inacreditáveis. E esta pequena-escala não é um elogio miserabilista, de um “portugalzinho” (tal como o outro dos “pequenitos”), mas sobre a ideia de diversidade num território heterogéneo, em que as coisas se fazem de forma especializada e numa pequena-escala, uma escala que permite manter um saber fazer vivo e atualizar as tecnologias do passado aos objetos da contemporaneidade. Uma escala humana, que nos deverá permitir produzir e consumir de uma outra forma no futuro.
Neste projeto, a marca constitui-se também com uma narrativa baseada em precissas de uma certa ideia de portugalidade: a Mariamélia nasceu de um imaginário de delicadeza e sensibilidade, de feminilidade (que tantas vezes é vista como fraqueza), mas também no sentido de uma certa nostalgia que, à época, me parecia fazer sentido. Quando passei a gerir o projeto a solo, com a ideia mais sólida de procurar os artesãos que conhecia e saber mais sobre cada um deles, a noção de manufatura passou a ser a ideia prevalecente porque parecia existir próxima da noção de produção semi-industrial que era precisamente aquilo que observava na maioria das oficinas que conheci. Manufatura, segundo o dicionário, significa tanto um "trabalho manual" como a "produção de um grande estabelecimento industrial", sublinhando a viagem dos significados que a palavra adquiriu ao longo do tempo. Etimologicamente, sugere: manus, 'mão' e facĕre 'fazer’, do latim. Ou seja: as mãos fazem. Desde que desenvolvemos ferramentas, as mãos fizeram com ajuda de ferramentas, e a certa altura as ferramentas tornaram-se máquinas, cada vez mais complexas e autónomas, sendo que precisaram sempre das mãos para as manobrarem. No entanto, as inúmeras formas de fazer possíveis hoje em dia parecem-me muito menos decisivas do que a forma e a escala desse fazer. Por forma quero dizer, a intenção: financeira, social, ambiental; e por escala quero dizer a quantidade: de matéria, de mão de obra, de objetos, que são resultantes dessa manufatura.
Ao falar de território falamos obrigatoriamente de escala: como medir, como olhar, como conhecer? Confesso que sei muito pouco sobre o território, mas penso muito sobre ele: sobre o território em que habito: sobre o meu bairro e as ruas onde vivo, sobre o que acontece nos jardins e nas escolas (como escrevi na newsletter anterior), ou sobre os problemas que circundam a zona onde vivo, e que me preocupam. O hábito de fotografar as ruas dos sítios onde vivo e onde vivi tem sido uma das formas de criar uma relação de conhecimento e de memória com esses territórios, e comigo mesma no território (e no tempo). Por isso, penso que conhecer melhor o território e criar uma relação com ele pode passar apenas por conhecermos melhor o que nos está mais próximo: a nossa rua, o nosso bairro, a nossa cidade. Em troca — pela conversa informal, pelos media, pela arte ou pela política — podemos informar os outros do que passa no nosso canto e aí, passar a ter essa visão realmente glocal do nosso país, e consequentemente da nossa península, do nosso continente, e até do mundo.
Para podermos falar “orgulhosamente” daquilo que é local, made in Portugal, temos de saber falar dessa micro-escala: a do território onde estão os lugares, as matérias e as pessoas dedicadas ao seu ofício. Essa micro-escala só é informada pelo que se passa à escala individual porque é apenas no território, e portanto, nos lugares e nas pessoas que os habitam, que temos de nos fixar para falar de “orgulho” em relação a uma ideia de país. Para que possamos incluir todos nesta ideia diversa de país, em vez de a fecharmos ao outro, adensando uma ideia de nacionalidade que não determina absolutamente nada. Para que tenhamos vaidade (em vez de orgulho) do que é feito cá, é preciso conhecer o quê e por quem é feito, uma verdadeira cultura nacional da manufatura em que as origens são do conhecimento público e também aprofundadas para não cairmos em maniqueísmos. Não queremos um território estanque em que só há barro negro em Bisalhães ou só se faz cestaria de cana no Algarve (quando há tanta cana no Minho). As origens são diversas e heterogéneas, e ao longo do tempo, tornar-se-ão difusas. Mas a maioria permanece tempo suficiente para que sejam divulgadas e redescobertas, como a recente camisola de lã da Póvoa de Varzim. E tantas outras ainda por descobrir, de Norte a Sul, do Continente às Ilhas. Um território infinito em si mesmo.
Ide à descoberta!
Filipa