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Do descartável ao bibelô

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Usabilidades e usos dos objetos artesanais

Filipa Cruz
May 28, 2021
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Maio

Após uma longa ausência, retomo este email com um texto "a dobrar", agora para refletir sobre os valores de uso e de utilidade dos objetos artesanais.


Se há uma relação unívoca entre poder de compra e os objetos que compramos, há também uma relação entre essas escolhas e o nosso estilo de vida, ou melhor, o tempo que dispomos para os objetos, desde o guarda-roupa ao nosso meio de transporte diário. Escolher objetos mais duráveis, de matérias naturais, também pode ser sinónimo de dedicarmos mais tempo à sua manutenção. No caso mais óbvio do nosso guarda-roupa, menos peças de mais qualidade poderão dotar-nos de um guarda-roupa mais durável e mais sustentável a longo prazo, mas teremos de renunciar às práticas comuns de cuidados da roupa, se queremos que essas peças mantenham a sua durabilidade. Talvez tenhamos de aceitar lavar muito menos a nossa roupa, talvez usar programas de lavagem mais delicados e com produtos com menos químicos, renunciar às secagens automáticas e estender roupa ao sol ou lavá-la à mão. E estas são práticas que a maioria das pessoas já não considera incorporar na sua vida quotidiana, por falta de tempo, de condições ou de disponibilidade para essas tarefas.

Por isso, quando falamos de objetos duráveis e significativos, falamos de objetos que exigem de nós algum compromisso a longo prazo com a sua manutenção. Existem no espectro oposto aos produtos descartáveis da filosofia de obsolescência planeada, que preenchem um vazio (psicológico) para criarem apenas o desejo do próximo produto a adquirir. O tempo dos produtos duráveis, é um tempo que nos convoca para uma presença, uma comunhão com essas peças, que se renovará ao longo do tempo, e criará uma história comum. Seja com uma camisola de lã, uma bicicleta antiga, uma peça de mobiliário ou uma simples escova. Entre outros fenómenos, a obsolescência planeada de todos os produtos alteraram a nossa forma de relação com os objetos que adquirimos, de uma forma absoluta. É cada vez mais difícil imaginar uma relação duradoura com os objetos que compramos, considerando-os como investimentos no tempo, criando uma relação de cuidado que prolongue a sua vida a par da nossa.

A ideia contemporânea de imprevisibilidade da vida, alimentada largamente pelos media e pela cultura popular dos nossos dias, aumentam esta sensação de que nada durará para sempre, e portanto, que será absurdo que os nossos objetos nos sobrevivam. Enquanto não conseguirmos mudar este paradigma, estaremos reféns das mesmas lógicas de produção e consumo que promovem esta mesma imprevisibilidade, e o estado de alerta permanente em que (sobre)vivemos: 


“Há uma aceleração da relação social com o tempo que se verifica de duas maneiras — por um lado as durações encurtam, desde logo com bens e artefactos consumíveis submetidos à obsolescência programada; por outro, as mudanças multiplicam-se desde logo com uma intensificação de estímulos que no limite procura preencher todos os momentos da existência dando uma nova atualidade à velha ideia aristotélica de que a natureza tem horror ao vazio. Só não será tanto a natureza mas uma natureza humana fabricada, de pessoas condicionadas a abominar o vazio quando a todo o instante têm de dar notícia de si numa rede social.” 

E se parássemos de sobreviver?, André Barata
edição Documenta/Sistema Solar, 2018


No que toca às praticas de consumo “consciente” destes tais objetos duráveis, há uma ideia que me tem assaltado várias vezes, que tem que ver com a filosofia de produto, que se relaciona, não apenas com o seu valor percepcionado e o seu valor económico, mas com a sua performance e como essa performance afeta a escolha dos objetos que usamos diariamente. Comprar uma camisola sintética numa loja de fast-fashion, uma camisola de lã numa outra loja de fast-fashion, ou uma camisola de lã portuguesa, feita manualmente por artesãs locais, são três abordagens diferentes que ilustram, não apenas o nosso poder de compra, mas também o nosso tempo para aqueles artefactos — não apenas dedicado a pensar, avaliar e fazer estas escolhas, mas um tempo de uso e de manutenção deles, após a compra. O tempo para cuidar de uma camisola industrial sintética, de uma camisola industrial de fibras naturais, ou de uma camisola artesanal de fibras naturais não processadas, é largamente diferente em cada um destes casos, e define a nossa relação com esta hipotética camisola de lã: como estamos ou não investidos em prolongar a sua vida, dependendo da relação que estabelecemos com ela. Ou seja, existe sempre, em qualquer objeto que compramos, um nível de compromisso com a sua manutenção, e, talvez, concentrarmo-nos neste compromisso seja essencial para refletirmos criticamente sobre o consumidor que somos, e que queremos ser.

Para imaginar produtos mais justos e sustentáveis, não bastará, portanto, regenerar objetos de produção tradicional, artesanal ou semi-artesanal. É essencial refletir de que forma estes objetos são ainda pertinentes do ponto de vista da sua utilidade prática, sob pena de passarem rapidamente a memorabília de um outro tempo, e serem encarados como objetos decorativos que viram ultrapassada a sua função. Utilizar de forma quotidiana estes objetos, testando a sua usabilidade, é crítico para permitir, descobrir e potenciar novos usos, evitando que estas práticas e estes materiais sejam relegados para a categoria de artesanato. Uma categoria que, em Portugal, sofre um processo de marginalização perpétuo, precisamente porque se remove a carga funcional dos objetos artesanais, associando assim o artesanato a um processo semi-artístico e semi-técnico, que não tem a capacidade de produzir objetos utilitários.

Revista "Panorama", n.º 10, Agosto 1942. "Ala-arriba: novo filme nacional" (fonte: Hemeroteca Digital)

Um exemplo deste processo que é, não só atual como pertinente, é o da recentemente famosa camisola Poveira. Um objeto da tradição piscatória do norte litoral português, em que a cultura da pesca contribuiu para o desenvolvimento de objetos artesanais utilitários, relacionado com a vida duríssima das campanhas piscatórias. E que foi inclusivamente usado, a partir da década de 30, como baluarte dos símbolos nacionalistas que o regime de Salazar, imaginado por António Ferro, tanto precisava de construir para edificar as suas narrativas nacionalistas e fascistas, que se afirmavam um pouco por toda a Europa. Um dos documentos históricos mais importantes onde foram utilizados os símbolos Poveiros, entre os quais as camisolas, foi no filme de 1942 de Leitão de Barros, Ala-Arriba!, numa encomenda do SPN (Secretariado da Propaganda Nacional).

Esta contextualização histórica da camisola Poveira tem um objetivo: fazer-nos ver que um objeto ancorado numa tradição de pelo menos dois séculos, talvez não seja exatamente usável nos dias de hoje. Uma camisola de lã grosseira, sem tratamento, como a lã Poveira (que é feita maioritariamente com o velo das ovelhas Bordaleira Serra da Estrela, uma raça autóctone desta zona), não é exatamente a peça de vestuário mais prática para as pessoas do século XXI, das quais apenas uma minoria tem profissões ligadas à pesca ou à agricultura, e nas quais outras peças de vestuário sintéticas se impuseram (dos polares às parkas), pela sua economia e facilidade de substituição por outros exemplares, mas também pela sua manutenção simplificada. Não é por acaso que a tão debatida “cópia” da marca americana que se apropriou do design da camisola tradicional da Póvoa de Varzim, a “atualizou” em fio de algodão em vez do fio de lã.

Serge Gainsburg e Jane Birkin, em viagem pelo Japão, usando uma das suas cestas de cana algarvias

O que quero fazer ver é que há uma dificuldade em trazer simplesmente estes objetos da tradição para a vida quotidiana da contemporaneidade, sem que se transformem facilmente em bibelôs. As cestas que outrora os pescadores do Algarve usavam para guardar a pesca do dia, e que transportava o polvo desta zona até ao Norte do país, ganhando assim o nome de “cesta do polvo”, é usada nos anos 60 por uma atriz francesa, de férias no sul do país, como acessório de moda, e rapidamente esta peça é popularizada como ícone da modernidade, numa apropriação de um objeto da tradição local em objeto de culto, fotografado ao extremo nas mãos de Jane Birkin. Tanto que esta cesta algarvia ganha entretanto o epíteto de “Birkin basket”: a cesta dos pescadores do Algarve passa a ser, ironicamente, da atriz francesa e não da região onde é feita até hoje. Porque se por um lado, queremos manter estes artefactos vivos e contemporâneos, o esforço da sua atualização pode cair apenas em exercícios estéticos, que os justificam, mas que também os excluem de uma utilidade contemporânea, que suplante a cultura do estilo e dos trends. 

Portanto, acredito que, na maioria dos objetos que compramos, não existe exatamente um binómio barato/caro, baixa qualidade/alta qualidade, descartável/durável, usável/não usável, mas uma rede de sinónimos e de contrários, em que podemos vislumbrar exemplos mais próximos dos extremos. Repensar seriamente esta rede de significados e de ações, para construirmos um novo consumidor — e repensarmos todo um sistema de consumo — terá de passar por refletir sobre as expectativas que depositamos nos objetos que desejamos e de como essas expectativas estão muito mais relacionadas com as nossas interações sociais, do que propriamente com a usabilidade e durabilidade dos objetos, objetivos estes que respondem mais diretamente às inquietações de sustentabilidade a longo prazo: consumir muito menos e melhor, eliminando progressivamente o consumo por impulso. Não se trata de eliminar a carga simbólica e social dos objetos, mas resignificá-la, para que os objetos voltem a ter propósito na nossa vida, e possamos dessa forma contrariar progressivamente as lógicas de aceleração do tempo social que culmina facilmente no descartável e na cultura das tendências.

Filipa

Todas as imagens desta newsletter, à exceção das imagens de arquivo, são da autoria da Matilde Viegas.

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