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O discurso que vende

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Produção artesanal e apropriação cultural: um caldo entornado

Filipa Cruz
Apr 2, 2021
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Março

“As if being an artist is the problem and not a system that refuses to reward the absolute bravery and doggedness required to create things with your hands.”


Partindo desta frase incrível da ilustradora australiana Gorkie Cork, quis navegar algumas questões relacionadas com aquilo que me ocupa a cabeça desde há muito tempo: a (falta de) valorização dos produtos artesanais, e, consequentemente, do trabalho artesanal, a par do trabalho artístico.

Parece que, hoje em dia, criar objetos, imagens, música, espetáculos, que não se convertam automaticamente num culto de milhões, ou seja, que não sejam instantaneamente monetizáveis, continua a ser apenas um “capricho” dos criativos. E, no entanto, estes mesmos criativos são sempre chamados a responder quando nos vemos confrontados com circunstâncias inéditas nas sociedades humanas, tal como vimos ainda mais claramente no ano passado, quando, perante a impossibilidade de estarmos juntos e imaginarmos um mundo em que a proximidade coloca vidas em risco, exigimos mais arte, mais cultura, acessível e para todos, à distância de um clique, para nos salvar do medo e do tédio. Mas quando a economia “contraiu” e nos vimos a braços com a ideia de uma nova “crise”, ou seja, de sobrevivência (enquanto outros multiplicam lucros), os produtores de cultura já nos pareceram surpérfluos.

E aos artistas, performers, designers, artesãos, é sempre pedido que se adaptem e readaptem às diferentes circunstâncias económicas com “criatividade”. Criatividade essa que é rapidamente usurpada, copiada e revendida vezes sem conta pelo “mercado” dos grandes grupos económicos. Porque os mecanismos de sobrevivência económica estão longe de serem justos e equivalentes. Porque aceitamos continuamente estruturas cada vez mais desiguais, trabalho cada vez mais precário, produtos e serviços cada vez mais opacos. “É a lei do mercado!” disseram-me uma vez, a propósito do sucesso das novas plataformas digitais de “táxis” urbanos. Eu só vejo uma lei da selva: os grandes predadores e uma pequena parte que vive como parasitas junto a estes. Nesta história somos todos potenciais presas.

Não precisamos de um melhor exemplo deste sistema em desequilíbrio permanente que a recente polémica à volta da Camisola Poveira. Um objeto que deveria ser desconhecido da maioria da população, mas que à boleia de um certo capitalismo oportunista passou a causa nacional. Na verdade, não consigo ter empatia por nenhuma das visões polarizadas sobre este caso. Tal como não me parece aceitável a conduta da marca norte-americana e ainda menos as suas desculpas “performativas”, também não concordo com a forma como a questão foi colocada por cá, caindo quase sempre num nacionalismo bacoco, cheio de desonestidade intelectual ao colocar a questão em termos de apropriação cultural do nosso património (aquele que não valorizamos, não conhecemos, não protegemos), enquanto negamos continuamente as nossas próprias “apropriações culturais” do passado.

A ideia com que fico é que o património material artesanal em Portugal, só ganha valor quando sai fora de portas. O movimento de valorização dos nossos produtos, das marcas nacionais, mas muito especificamente dos nossos artesãos e artífices raramente surge a partir de dentro, e quando acontece, parece precisar da “opinião” estrangeira para validar os objetos como bens culturais, porque até ali são apenas vistos como folclore. Esta tendência não é alheia à tendência empreendedora do artesanato e das práticas de manufatura, que acontecem sobretudo nos países com economias mais robustas, mas também onde há uma cultura de valorização do handmade que por cá desconhecemos. O que está também relacionado com o facto das práticas artesanais em Portugal estarem historicamente ligada à subsistência e à ruralidade. Reverter estas associações simbólicas no espaço de algumas gerações não é fácil, mas fica ainda mais difícil quando continuamos a perpetuar uma tendência “decorativista” nas artes e ofícios em Portugal, em que os objetos, tal como a camisola Poveira, são ainda tratados como “peças de museu”, feitos por meia-dúzia de artesãs que as continuam a fazer apenas por “amor à camisola”, tal como retrata este artigo do jornal Público. Segundo as contas das próprias artesãs, ganham pouco mais que um euro à hora em cada uma desta peças, que rondam os 80-100 euros, “mas isto deveria vender-se por 250 a 300 euros”, como afirma uma das artesãs que faz parte da associação dos Amigos do Museu Municipal da Póvoa de Varzim. 

Para tornar esta situação ainda mais difícil, o município da Póvoa quer comprometer-se com a profissionalização desta produção artesanal, mas recusa o aumento do preço das camisolas, o que claramente não resolve o problema das artesãs nem na sustentabilidade financeira desta produção artesanal. Sem uma estratégia local para as artes e ofícios, baseada na realidade e não nas suposições sobre o que fazem e quem são os artesãos, será incrivelmente difícil evitarmos situações destas, em que se resolvem os problemas com a certificação das peças, e com uma espécie de centralização da sua produção, sem qualquer garantia de respeito ou dignidade pelo trabalho de quem produz as peças, o que tornará impossível a continuidade desta prática no futuro.

Sem uma política cultural forte e consistente, dentro e principalmente, fora de portas, não teremos quaisquer hipóteses contra os Golias das grandes economias mundiais. E a única forma de o fazer de forma consistente é fazer um trabalho sério ao nível local, ao nível das autarquias, para que os artesãos não sejam apenas uns velhinhos que vão mostrar aquilo que fazem nos programas da manhã da televisão nacional, mas profissionais empoderados e autónomos, com projeto próprios e cooperativas onde, em conjunto, terão outras estratégias para dar dignidade e qualidade ao seu trabalho. Sem paternalismo e sem snobismo, que são invariavelmente as duas estratégias que se usam em Portugal para lidar com as pessoas que fazem trabalho artesanal.

Até há duas semanas, meio país não sabia o que era nem como era essa camisola tricotada em lã Poveira, e bordada manualmente em fio preto e vermelho, com símbolos nacionais como a famigerada “cruz de Cristo”, mas também com as siglas poveiras, que consistem num sistema de proto-escrita primitiva com mais de 1000 anos, deixada pela presença viking nas vilas piscatórias da Póvoa de Varzim, Caxinas e Vila do Conde.

Se por um lado há vários argumentos para afirmar que a promoção e defesa deste património material local é feito de forma muito incompleta e deficiente, por outro, há neste episódio todos os ingredientes para problematizarmos os vários critérios com que julgamos o conceito de “apropriação cultural”, sem a reflexão necessária sobre as apropriações históricas de outras culturas que fizemos e continuamos a fazer, seja na manufatura, na indústria, na arquitetura ou no próprio espólio dos países que colonizamos, e cuja discussão à volta da sua devolução aos países de origem projetou largamente a discussão pública sobre o racismo sistémico no país. Havendo telhados de vidro, parece-me no mínimo imprudente que num país que tinha “colónias” até há menos de 50 anos, se possa falar em apropriação cultural como se fosse uma vítima.

Porque o verdadeiro escândalo não é a apropriação cultural de uma marca norte-americana, que é repetente nestas andanças, mas a falta de consciência sobre o que é esse património e sobre quem o faz. Oitenta euros por uma camisola de lã feita à mão não é barato: é irrisório. E este ponto não pode ser um tópico de discórdia, mas um facto. E ela nunca poderá competir, a nenhum nível, a esse preço, com uma camisola de produção industrial em algodão vendida por mais de 600 euros. Porque aquilo que estes preços nos dizem não é quanto custa a produção de cada uma das peças, o original ou a cópia, mas quanto ganha quem produz o seu discurso. Se queremos ser sérios a discutir quando vale um objeto artesanal, temos de garantir que o seu trabalho é pago de forma justa e proporcional a quem o faz, em vez de aceitarmos que só se pode ser artesão em Portugal a ganhar valores de miséria. É precisamente essa precariedade que nos deixa à mercê dos oportunistas mais “criativos”. Seria útil aproveitar-se este desaceleramento forçado do turismo para se encontrarem outras estratégias de valorização, promoção e divulgação do património material da cultura vernacular. Porque, como vimos recentemente, não faltarão os oportunistas que o transformarão em camisolas “mexicanas” a preços proibitivos.

Filipa


Todas as imagens desta newsletter são da autoria da Matilde Viegas e foram feitas em dezembro de 2019, em Barcelos.

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