Março
Se há expressão que me dá arrepios é aquela de “encontrar oportunidades na crise”. É provavelmente resultado do trauma da minha juventude, em plena recessão económica, dos anos negros “da crise”, com a qual ficamos todos mais pobres, menos alguns. Naquela que começamos agora mesmo a viver timidamente, cheios de esperança que não se transforme numa “verdadeira crise”, parece-me muito claro um sentido quase cósmico de resposta ao que exasperamos: desacelerar, abrandar, desligar. É claro que é assustador pensar no futuro próximo e no que teremos de fazer com as nossas vidas em modo de quarentena, mas para quem tem o privilégio de poder esquecer as contas a pagar por uns dias, o convite que faço é o de aproveitar este tempo, este tempo novo e diferente, dentro de casa, para fazer coisas que adiamos constantemente porque demoram demasiado tempo.
No meu caso, para além de trabalhar no novo site, tem sido arrumar a casa e destralhar o possível, reorganizar e limpar prateleiras enquanto revejo fotos antigas. Nos intervalos fermento a massa do pão. Por isso hoje proponho que aproveitem os próximos tempos de trabalho a partir de casa e de quarentena preventiva - tão essencial para prevenir cenários catastróficos - para porem as mãos (bem lavadas) na massa. Na próxima ida essencial ao supermercado tragam farinha ou encomendem-na aos produtores nacionais de farinha de moleiro, mais a norte ou mais a sul. Acrescentem a esta equação um pouco de sal marinho e estão prontos a começar esta verdadeira epopeia do pão lento. Há livros, e sites e blogs e vídeos infinitos com instruções, receitas, dicas e aulas à distância para criarem o vosso próprio fermento natural, vulgo “isco”. Enquanto ele se desenvolve podem regar as plantas, arrumar o escritório ou ler aquele livro que está adiado há meses. Agora já não temos de sentir culpa pelo tempo que temos para nós: este novo tempo de quarentena está-nos a ser dado, sugerido, avisado. Podendo, é fazer dele o que quisermos, alimentando uma nova concepção de tempo, contrária aquela que nos querem vender, e que não só desacelera como permite espaço para a contemplação, para as pequenas rotinas, e para a partilha.
Mais pão lento
E agora vem a parte da oportunidade: que melhor forma de convencer meio-mundo a comprar cestos de fermentação do que pô-los a aprender a fazer este pão pós-moderno, cheio de influências do pão pré-industrial mas que é feito numa era em que somos donos dos nossos fornos, dos nossos corpos e do nosso tempo? E porquê cestos de fermentação? Para explicar isto tenho que vos pôr a par do que eu entendo que é a missão deste projeto: a Mariamélia constitui-se como um projeto comercial de base social com a missão de demonstrar que a manufatura nacional de pequena escala tem um valor social e um valor económico estratégico, além de constituir um conhecimento essencial na atualidade, tendo em conta os desafios da crise climática. Os produtos desenvolvidos à volta do pão de fermentação natural são uma demonstração prática da dificuldade em equilibrar as questões de escala, produtividade e sustentabilidade. A sua comercialização constitui-se por isso como forma de incentivo à continuação da missão sócio-cultural da Mariamélia: continuar um trabalho lento e consistente de criação de relações próximas com artesãos, contar as suas histórias e divulgar o seu trabalho, para futuramente poder desenvolver relações de colaboração horizontal entre estes e os criativos que procuram objetos e soluções baseadas no conhecimento informal destes profissionais.
Portanto está definido o objetivo deste “oportunismo”, por um lado desacelerar para podermos questionar, por outro permitir o empoderamento dos artífices e artesãos e a valorização do conhecimento prático ao qual não estamos a prestar a atenção devida.
Filipa
Todas as fotos são da autoria da Matilde Viegas. A primeira pertence ao projeto fotográfico “Alento”.